PREFÁCIO

«Diga-me, Fernando, quem é, que é este Salazar que nos calhou em sorte, É o ditador português, o protetor, o pai, o professor, o poder manso, um quarto de sacristão, um quarto de sibila, um quarto de Sebastião, um quarto de Sidónio, o mais apropriado possível aos nossos hábitos e índole». Com «alguns pês e quatro esses», o escritor José Saramago (1922–2010), prémio Nobel da Literatura em 1998, definia Salazar através do poeta Fernando Pessoa (1888–1935), do qual um dos seus heterónimos, o médico Ricardo Reis, encontrava o fantasma nas ruas de Lisboa em 1936. É provável que a ironia amarga de José Saramago nos esclareça mais sobre Salazar, tal como o via através do olhar míope de Fernando Pessoa, com o qual também ajustava algumas contas, nomeadamente a sua ausência de oposição. No entanto, o carácter enigmático do ditador reside totalmente por detrás desses quatro pês que designam «o protetor, o pai e o professor» que encarnam esse «poder manso». E por detrás dos esses, bem como por detrás do esse que ornamentava os cintos dos jovens alistados na Mocidade Portuguesa — organização paramilitar criada em 1936 —, o S que o regime dizia significar «Servir», que ditador se escondia? Quem era «o verdadeiro Salazar» que muitos dos seus admiradores e opositores tentaram compreender?

Tal como outros ditadores, Salazar viveu cercado de mistérios — a começar por aqueles que rodeavam a sua vida privada — e escondeu-se atrás das máscaras propícias a todas as lendas, nomeadamente a do «monge ditador» e a do «ditador contra a sua vontade». Se, como outros, erigiu o mistério em arte de governar, fê-lo sabendo durar.

Se a sua reputação de dissimulação e de astúcia não foi usurpada, o seu discurso público foi, com frequência, claro e sem ambiguidades, desde a célebre frase «sei muito bem o que quero e para onde vou», proclamada na sua tomada de posse como ministro das Finanças, em abril de 1928. Se desde muito cedo, muito antes de chegar ao poder, tinha «uma certa ideia» de Portugal, esta não foi sempre a mesma. Não desprovido de contradições, sibilino, Salazar foi, em simultâneo, inflexível e maleável. Se a sua mão não tremia e se a sua visão era considerada acutilante — ao ponto de impressionar os seus interlocutores pelo olhar e de os intimidar com frequência —, o seu discernimento alterava-se facilmente ao contacto com inimizades ou ódios pessoais, ao ponto de provocar, ao longo do tempo, uma cegueira crescente e uma insensibilidade ao espírito do tempo, alimentados por uma pro- funda misantropia.

A invisibilidade

Apesar de desconfiar de todas as formas de adulação, Salazar apreciava as manifestações de admiração e de fidelidade, desejando ser respeitado como «o professor da nação». De forma deliberada, cons- truiu uma imagem marcada de verticalidade e de proximidade fingida, com o «Portugal dos pequeninos», as «lições de Salazar» e o «viver habitualmente». Omnipotente e invisível, era assim que Salazar queria ser. Oriundo de um meio rural e modesto — não tão pobre como dava a entender, pois o seu pai era feitor de um rico proprietário agrícola —, Salazar dava a imagem afetada e cordial de homem culto, que apreciava os livros, o teatro e a música, que falava francês quase sem sotaque como a alta sociedade nobiliárquica e burguesa que tanto observara durante os seus anos de formação. Poupado ou até avarento, dava uma atenção especial ao seu vestuário, austero, sombrio, mas sempre de bom corte, desde que fora nomeado professor catedrático da prestigiosa Universidade de Coimbra, apenas com 28 anos. Era um homem de modéstia e discrição fingidas, particularmente orgulhoso do seu trajeto «meritocrático» que lhe permitiu ocupar as mais altas funções — ministro das Finanças e depois presidente do Conselho, em 1932 — durante mais de quarenta anos, de abril de 1928 a setembro de 1968.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Solitário, avesso às multidões, não foi homem de um partido, salvo do pequeno Centro Católico Português antes de ascender ao poder. Criou um partido único, a União Nacional, do qual não quis fazer um partido de massas e mobilizador. Desprovido de carisma, pouco à vontade em público, «orador contra vontade», reconhecia não saber falar nem escrever para um grande público: «Quando me dirijo a seis mil pessoas, é como se estivessem seis à minha frente.» Embora tivesse o dom de captar e de dizer o essencial em poucas palavras acessíveis a todos — aquilo a que chamava «intuição profunda» —, o «professor Oliveira Salazar» exprimia-se em público lendo friamente e com uma voz nasalada textos cuidadosamente redigidos e demonstrativos, procurando compensar com inteligibilidade e profundidade a falta de emoção e de paixão nos seus discursos. A eficácia daquilo a que chamava «trechos de prosa que foram ditos» — incluindo na rádio, nunca domada, desde o seu primeiro discurso em dezembro de 1934 — visava não suscitar o entusiasmo das massas, mas, recorrendo à razão e à lógica num plano narrativo, convencer um público composto de milhares de consciências individuais que comungavam separadamente com o ditador. Em busca da invisibilidade, evitava, tanto por natureza como por calculismo, as aparições públicas para melhor cultivar a imagem de um «monge ditador», solitário e incansável no trabalho no seu gabinete monacal. Ser anónimo e quase invisível, aceitar a sua condição e não contestar a ordem social, este era o objetivo atribuído aos portugueses enquanto indivíduos; só a nação — «Tudo pela nação, nada contra a nação», segundo a frase incansavelmente entoada desde 1929 —, regenerada pelo espírito de sacrifício, tinha vocação para ser visível e adulada. Ao louvar o Portugal humilde, silencioso e trabalhador, Salazar assumia-se como o seu arauto.

Será que o «mistério Salazar» residia nesta personalidade apagada e complexa, talvez inacessível, como fingia interrogar-se, em finais de 1932, o jornalista António Ferro (1895–1956) numa série de entrevistas com o novo presidente do Conselho, publicadas pelo jornal Diário de Notícias, antes de ser nomeado diretor do Secretariado da Propaganda Nacional: «Constatando a irrupção destas três sílabas, Sa-la-zar, na consciência da nação, interrogamo-nos: Quem é Salazar? Um Mussolini, um ditador do tipo d’O Príncipe de Maquiavel, um dominicano, um franciscano? Ou antes, simplesmente, hipótese mais aceitável, um estadista, um simples mas grande contabilista das almas e dos orçamentos? Existirá este homem frio, distante, insensível, pouco sociável? Quem nos governa? Uma realidade ou uma sombra?»

Poderia Salazar ser reduzido a este «grande contabilista das almas e dos orçamentos», ou ao «mordomo-mor a cargo de um domínio rural tentacular», tal como evocado por um dos seus raros biógrafos?

Salazar amava, acima de tudo, Portugal. Um Portugal maior do que o seu estreito retângulo peninsular, um Portugal como ele o imaginava, um Portugal de cartão-postal enraizado nos seus «oito séculos de história nacional». Um Portugal que «é preciso amar e conhecer», repetiu ele no prefácio do seu livro de entrevistas com António Ferro: «É preciso amar e conhecer Portugal, o seu passado de grandeza heroica, o seu presente de possibilidades materiais e morais, adivinhá-lo no seu futuro de progresso, de beleza, de harmonia. Só amamos o que conhecemos, mas para nos conhecermos é já preciso um princípio de amor. Repito: é preciso amar e conhecer Portugal.» Este Portugal eterno e imutável, o «verdadeiro Portugal», era no campo que ele pensava encontrá-lo, junto dos camponeses, dos notáveis locais e da Igreja. Na cidade, sobretudo em Lisboa, Salazar sentia-se desenraizado. Desconfiava do microcosmo urbano, com os seus operários e a sua pequena burguesia. Era na sua terra natal, na aldeia do Vimieiro, no centro da Beira Alta, distrito de Viseu, que o seu «nacionalismo telúrico» estava enraizado. Era no Vimieiro que relaxava quando tinha tempo livre. Aí residia «a verdadeira nação», que, escreve ele, «só se pode encontrar longe dos centros urbanos. E nestes espaços materializava-se a essência nacional da forma mais pura e mais autêntica».

No entanto, este Portugal «maior», simultaneamente rural e impe- rial, uno e indivisível no ultramar — ao ponto de provocar a queda do regime salazarista em 25 de abril de 1974 com a Revolução dos Cravos —, este «Portugal dos relógios parados» encarnava-se num ditador que nunca hesitou em mobilizar todos os instrumentos de intimidação e de administração do medo com que dotara o Estado Novo, recorrendo metodicamente à arbitrariedade, à censura, à denúncia e ao controlo do aparelho policial e judiciário com a polícia política, que passou a chamar-se PIDE em 1945. Este regime condenou a maioria esmagadora da população à miséria, como Simone de Beauvoir não deixou de observar, em março de 1945, por ocasião da sua primeira viagem a Portugal: «Um país pobre onde há pessoas muito ricas.» «O que nos parte o coração, quando percorremos Portugal, não é apenas a miséria, mas sim que, em grande parte, seja um resultado não da natureza, mas dos homens. Os que comem não se preocupam por mudar a sorte dos que não comem.»

Contudo, no estrangeiro, Salazar beneficiava de uma aura que poucos ditadores possuíam. Como explicar isto? Sem dúvida, por causa da ignorância que, tradicionalmente, envolvia Portugal, tal como Simone de Beauvoir observara em 1945: «No entanto, há um regime sobre o qual até os democratas convictos mostram a sua ignorância, o Estado Novo de Oliveira Salazar. Representam-no de bom-grado como uma democracia autoritária, um autoritarismo paternal. Salazar terá restaurado a ordem, equilibrado o orçamento, defendido os interesses nacionais, respeitando sempre a liberdade. Uma propaganda hábil esforçou-se por enraizar no espírito estas ideias consoladoras. De resto, Portugal é longe, quem sabe ao certo o que aí se passa?» A ignorância, portanto, mas também a comparação vantajosa com Franco, que só conseguiu concorrer com o seu vizinho ibérico no terreno da «arte de durar». Enfim, a inteligência, a cultura e o olhar penetrante do «Doutor Salazar» impressionavam muitos dos seus interlocutores e contemporâneos. Ao ponto de fazerem dele, ainda hoje, um modelo de estadista ou até de um «rei-filósofo» digno de Marco Aurélio.

Livro: “Salazar – Uma Biografia”

Autor: Yves Léonard

Editora: Edições 70

Data de Lançamento: 26 de outubro de 2023

Preço: € 25,90

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Esta aura de Salazar tem a sua origem na reverência ao «grande estadista» que regressa incessantemente. Mesmo hoje em Portugal, na forma de nostalgia em alguns. Uma nostalgia que supera a extrema-direita e a direita radical populista — pelos «comboios que chegavam à hora» e que faz a apologia do «esplendor de Portugal». Alimenta-se de uma narrativa nacional ampliada pelo Estado Novo em torno da expansão marítima, desde a tomada de Ceuta em 1415, a Salazar, reencarnação do Infante D. Henrique (1394–1460), cognominado o Navegador desde o século XIX. Reverência também em França, desde os anos 1930, da direita conservadora, para a qual Salazar encarna uma figura singular de líder, «sábio», «ao serviço da defesa do Ocidente», a alma de uma «ditadura da inteligência», para citar Henri Massis. Este «filosalazarismo» francês, compósito, recrutou os seus adeptos principalmente no seio das direitas nacionalistas e tradicionalistas, desde logo numerosos maurrassianos, como Henri Massis, Jacques Bainville ou Michel Déon, por vezes vindos do gaullismo, como Gilbert Renault — o coronel Rémy da Resistência — nos anos 1950. A figura de proa era Jacques Plocard d’Assac (1910–2005), antigo membro do Action française, discípulo de Maurras e colaborador antimaçónico que se exilou em Portugal em 1944, onde permaneceu até à Revolução dos Cravos de abril de 1974, aconselhando por vezes Salazar. Este propagandista do salazarismo em França, animador do programa La voix de l’Occident nas ondas da rádio portuguesa, foi o discípulo de um homem ao qual prestava um verdadeiro culto e que, até ao fim, considerou «a consciência do Ocidente». Ploncard d’Assac dedicou-lhe um ensaio biográfico que, sem esgotar «o imenso tema de uma alma e de uma vontade», segundo a dedicatória que dirigiu a Salazar aquando da publicação da obra em abril de 1967, traçava o retrato admirativo de um estadista que se dizia convencido, tal como ele, de que «não governamos anjos no espaço, mas homens na terra que são como são, e não como alguns gostariam que fossem».

Reverência incansável, portanto, pela «grandeza de alma» de um estadista cuja probidade se tornou lendária, verdadeiro mantra dos admiradores de Salazar desde os anos 1930. Esta imagem de probidade é, por certo, a mais utilizada ainda por aqueles que fazem da denúncia da corrupção um instrumento de ostracismo e de acesso ao poder que permite manipular a opinião através das fake news e das redes sociais, lançar o opróbrio moral à justiça e reprimir com o exército, denunciando a corrupção segundo o modo do «Lava Jato» brasileiro. A imagem, habilmente construída pela propaganda salazarista, do monge-ditador, «nascido e morto pobre», do asceta do Vimieiro, «solitário e sem vida privada», é deliberadamente instrumentalizada como valor de refúgio para tempos de desagregação. Na sua casa natal, foi colocada uma placa onde se lê: «Um homem que governou Portugal e nada roubou.» De passagem, apaga-se a complexidade da personagem e as zonas de sombra que envolvem a sua vida privada, a sua proximidade com os meios empresariais e o nepotismo que reinava no coração do Estado Novo.

Uma aceção positiva do predicado «novo» de um Estado Novo visto, sobretudo, como um «governo de homens competentes, de técnicos» também se perpetuou, alimentando igualmente a lenda. A sua modernidade tecnocrática não escapou aos que há muito comungam do anticomunismo, da defesa dos valores tradicionais da civilização cristã e da perpetuação da ordem social. Nos Estados Unidos, certas franjas neorreacionárias apelam a um novo Salazar, descrevendo o salazarismo como um «tradicionalismo paternalista» e Salazar como um «moderado». A posteridade do ditador também se mostrou fecunda sob o ponto de vista da «recuperação do Estado» e da modernização. A partir dos anos 1930, homens como Émile Schreiber (1888–1967), que se tornou Émile Servan-Schreiber após a resistência, prestaram homenagem ao balanço económico e financeiro de um homem que, «em menos de dez anos, restabeleceu a paz social, recuperou as finanças, estabilizou a moeda, moralizou e modernizou a administração». Depois de ter entrevistado longamente Salazar em Lisboa, este jornalista económico publicou, em 1938, Le Portugal de Salazar, que definia como uma «ditadura moderada», traçando um retrato elogioso do ditador que «não é plebeu e ainda menos condottiere», «muito diferente de um político de carreira», acima de tudo «um intelectual e um homem de ação», «um Marco Aurélio moderno». Comparando a sua política à de Poincaré em França, Émile Schreiber via no salazarismo «um governo de homens competentes, de técnicos» — ainda não se falava de tecnocratas —, cuja «originalidade consiste em ter conciliado a autoridade e a moderação». Longe do tradicionalismo, o que o seduzia sobretudo era a «vontade modernizadora que visa fazer o país sair do arcaísmo económico e social». Mistura de «estabilização à maneira de Poincaré» e de «reforma do Estado à maneira de Tardieu», Salazar encarnou durante muito tempo no estrangeiro aquele que fez uma «modernização conservadora», um perito económico e financeiro enaltecido pela sua ortodoxia financeira e pela sua modernidade.

Este pioneiro da «modernização conservadora», meio-Poincaré, meio-Tardieu, intrigou e até seduziu muito os seus contemporâneos, ao ponto de, por vezes, ser qualificado como «homem de génio». Por exemplo, Marcello Caetano (1906–1980), quando lhe sucedeu como presidente do Conselho, em setembro de 1968, declarou: «O nosso país habituou-se durante longos anos a ser governado por um homem de génio. A partir de hoje, temos de nos adaptar ao governo de um homem como os outros.» Ou Franco Nogueira (1918–1993), o seu último ministro dos Negócios Estrangeiros, que, na sua biografia em seis volumes, publicados entre 1977 e 1985, concluía: «Um homem de génio morreu [...]. Em Salazar, o homem dos problemas transcendentes e dos pequenos nadas, a solidão era uma necessidade moral, uma segunda natureza [...]. O sentido da grandeza habitava-o, sem dúvida. Pensava em grande e procurava realizar em grande

Vimieiro, 1970–2020

No entanto, no domingo de 26 de julho de 2020, a assistência era mais pequena no pequeno cemitério do Vimieiro para o 50.º aniversário da morte de Salazar. Se «pensava em grande», desejou ser enterrado na sua aldeia natal, sob uma pedra tumular com uma simples cruz, sem inscrição, apenas as suas iniciais — A. O. S. — e uma data, 1970. Sempre a invisibilidade, mesmo depois de morto. Alguns anos depois, um círculo de admiradores acrescentou à pedra tumular uma laje vertical de granito negro com duas pequenas fotografias de Salazar e uma inscrição, «saudosista» — «Havemos de chorar os mortos se os vivos o não merecerem» —, seguida de uma curta frase dedicada ao «Doutor Oliveira Salazar»: «O errar é próprio dos homens, mas até à data foi o melhor estadista e o mais honesto dos governantes de Portugal.» Contudo, no Vimieiro, não há nenhum mausoléu monumental, nem uma cruz enorme visível a vários quilómetros de distância, como no caso do general Franco no Vale dos Caídos, até à sua exumação em outubro de 2019. Uma nostálgica «associação para a história do Estado Novo», criada em 2016 e presidida por um general reformado da Força Aérea, preparou durante meses esta homenagem ao 50.º aniversário da morte de «Salazar, estadista», como sublinha o título da conferência de encerramento. Esta homenagem nada teve de oficial — nenhum representante do Estado marcou presença —, organizada no cemitério do Vimieiro e em Santa Comba Dão, com missa e discursos, por um círculo de admiradores dos quais fazia parte António da Silva Teles, o último secretário de Salazar. Uma homenagem «deliberadamente restrita», explicaram os organizadores no contexto sanitário ligado à pandemia de covid-19.

Esta pequena assistência de 26 de julho de 2020 contrasta com a multidão que se acumulara há 50 anos em Lisboa e, depois, ao longo da via-férrea entre a capital, Coimbra e a estação de Santa Comba Dão. Por fim, ao longo da estrada que leva à igreja de Santa Cruz do Vimieiro, onde Salazar foi batizado em 16 de maio de 1889, e o cemitério da aldeia, onde foi enterrado ao fim da tarde de 30 de julho de 1970, após as cerimónias fúnebres oficiais celebradas de manhã na solenidade gelada do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa. Ploncard d’Assac falou de um «plesbicito da morte», na segunda edição da sua biografia. O grande jornal Diário de Notícias dedicou a primeira página da sua edição de 31 de julho às exéquias nacionais, com o título — e fotografias da multidão — «A última viagem do Presidente Salazar»: «Portugal viveu um dia de impressionante dignidade e emoção. Das pedras evocativas do passado no túmulo pouco profundo da sua aldeia, “O Senhor Doutor” não regressará».

Mais lúcido e crítico, o Le Monde noticiou sobriamente na primeira página: «Salazar morreu. Um ditador do antigo regime.» O seu jornalista — e escritor — Paul-Jean Franceschini escreveu uma necrologia inspirada, sublinhando que «só a doença arrancou do seu posto o decano de todos os chefes de governo do mundo [...], o velho senhor de Lisboa, de rosto fino e traços austeros, educado e de espírito severo, com a sua elegância fora de moda, os seus costumes estritos e as suas botas». Quanto aos opositores, durante muito tempo amordaçados pela repressão e pela censura, condenados ao silêncio, à prisão ou ao exílio, o escritor — e médico de Coimbra — Miguel Torga (1907–1995) expressou com sobriedade e justiça o sentimento deles em relação ao anúncio do falecimento do ditador: «Salazar morreu. Mas tarde demais para ele e para nós que o combatíamos. Para ele, porque não morreu na sua glória como o deve ter sempre esperado; para nós, que não o vimos morrer no auge da nossa raiva, da nossa humilhação e da nossa revolta. Viveu a frio, conscientemente, sob um campanário de severidade gelada, viveu a inspirar o medo; e morreu a frio, inconscientemente, numa mole agonia prolongada e inspirando mais do que piedade.»

Morto duas vezes — a primeira, politicamente, quando, vítima de um acidente vascular cerebral em setembro de 1968, foi «exonerado das funções de presidente do Conselho» pelo almirante Américo Tomás, chefe de Estado; a segunda, em julho de 1970 —, durante os dois últimos anos de vida, Salazar encarnou a «personagem pirandeliana» descrita por Paul-Jean Franceschini no Le Monde em 28 de julho de 1970, «esse chefe que, nos palácios oficiais, ainda acreditava por instantes ser o que deixara de ser, rodeado da cumplicidade triste de uma enfermeira, de uma leitora e de algumas velhas senhoras». O salazarismo também morreu duas vezes, ainda que o Estado Novo lhe tenha sobrevivido alguns anos, até à Revolução do 25 de Abril de 1974. Não por vacuidade ideológica, mas por osmose entre o salaza- rismo e o seu criador, que revelou o carácter insolúvel da sucessão, problema fundamental que Salazar sempre recusara resolver. Depois dele, Caetano. Mas, atrás de Salazar, ninguém, como ele quis.

É conhecida a famosa afirmação de Alain Peyrefitte, segundo a qual «a verdade do general de Gaulle está na sua lenda». Poder-se-á dizer o mesmo de Salazar? Duas dificuldades, pelo menos, aguardam quem estuda de perto Salazar. Em primeiro lugar, o risco de confundir a sua vida com a do Estado Novo, tanto uma parece abraçar a outra. A maioria das fontes consultáveis conduz-nos a isto, sobretudo as suas copilações de discursos e o rico fundo dos arquivos Salazar preciosa- mente conservados e digitalizados nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, em Lisboa. No entanto, Salazar viveu mais de 40 anos — ou seja, metade da sua existência — antes de aceder ao poder, em 1928, e de fundar, em 1933, o Estado Novo. A primeira metade da sua vida é, na maioria dos casos, tratada à pressa, a custo de alguns atalhos de natureza teleológica, como se fosse inútil lembrar que uma pessoa não nasce, mas torna-se ditadora. Apesar de totalmente dedicado à sua função de presidente do Conselho de 1932 a 1968, Salazar também viveu à margem deste cargo. Isto é atestado por numerosos testemunhos, por alguns amores ou amizades, bem como pelo seu diário meticulosamente conservado, de janeiro de 1933 a setembro de 1972, em 72 cadernos cuja transcrição minuciosa foi recentemente publicada.

Também devemos desconfiar da hagiografia, pois o mito que o próprio Salazar construiu ainda impera. O homem continua a ser um enigma tanto em Portugal como no estrangeiro. Um enigma alimentado de lendas, ao ponto de, em 2007, ter sido considerado a «personalidade histórica mais marcante de Portugal» numa sonda- gem muito pouco científica realizada pelo canal público de televisão RTP, muito à frente de Álvaro Cunhal, de Aristides de Sousa Mendes — «o cônsul de Bordéus» — e dos navegadores Vasco da Gama e Pedro Álvares de Cabral. Contudo, Salazar seria «popular»? Teria ele a ade- são dos Portugueses? Seria consensual? Ou será que só governava inspirando o medo ou o respeito ligado aos seus títulos académicos e à sua função?

Não há dúvida de que Salazar se tornou um bom produto editorial em Portugal, onde, nos últimos 20 anos, se multiplicaram obras de qualidade variada com o seu nome no título, revelando o interesse pronunciado de um público bastante grande por uma personagem abordada de várias maneiras, por exemplo, pelo prisma temático («Salazar e o Desporto», «Salazar e as Mulheres», «Salazar e os Monárquicos»...) ou relacional, associando Salazar a esta ou àquela personagem. No entanto, as verdadeiras biografias ainda se contam pelos dedos da mão: a súmula, hagiográfica, de Franco Nogueira (1977–1985); a biografia política do historiador Filipe Ribeiro de Meneses, inicialmente publicada em inglês; e a mais recente do politólogo britânico Tom Gallagher, em junho de 2020 — oportunamente, no quinquagésimo aniversário da morte de Salazar —; sem esquecer o recente ensaio biográfico do jornalista e escritor italiano Marco Ferrari.

A indeterminação do regime salazarista autorizou múltiplas interpretações e polémicas, geralmente na forma de aporia em torno da famosa questão «autoritarismo ou fascismo?». O famoso lema «Deus, pátria, autoridade, família e trabalho», enunciado por Salazar no seu discurso de Braga, em 28 de maio de 1936, por ocasião do décimo aniversário da «Revolução Nacional», foi muitas vezes retomado e adaptado por outros regimes até aos nossos dias, geralmente na forma de um tríptico, desde o «Trabalho, família e pátria» do regime de Vichy ao «Deus, pátria e família» do Ação Integralista Brasileira e de Jair Bolsonaro. Para lá de algumas controvérsias estéreis e resumos arriscados, o regime salazarista inspirou, desde há cerca de 40 anos, sérios estudos históricos que contribuíram para dissipar a maioria das zonas de sombra que o envolvem. As coisas são diferentes em relação a Salazar, que, após alguns anos de «travessia do deserto», suscita um reganho de interesse, sobretudo no estrangeiro. A audiência reduzida da história séria, sólida, mas com demasiada frequência confidencial, não lhe permite rivalizar — em Portugal e nos outros países — com um romance nacional de maior público. Esta narrativa, impulsionada pelo salazarismo em torno dos «oito séculos de história nacional», mantém uma visão, bastante partilhada à medida que o tempo passa, que tende a erigir «o estadista Salazar» não como ditador frio e brutal, mas como salvador, arauto das «virtudes nacionais» seculares e do «esplendor de Portugal». Quanto à perceção tradicionalmente periférica de Portugal — «era uma vez um pequeno país, vestígio semiarruinado de um grande império de outrora», escrevia Rudyard Kipling em 1896 —, conjugada com a «retórica da invisibilidade» cultivada por Salazar, confere uma aparente inocuidade a esta personagem singular muito mal conhecida, que parece vir de outro tempo.

Quando Portugal se prepara para celebrar o 50.º aniversário da Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974, dia da liberdade e ato fundador da democracia portuguesa, odiado pelas direitas radicais, este «ditador de antigo regime» evocado pelo Le Monde em 28 de julho de 1970, «o velho senhor de Lisboa» volta a ser citado. Se o salazarismo morreu com Salazar, as suas sequelas continuam muito presentes, por vezes marcadas de nostalgia. Para as superar, devemos interrogar-nos incansavelmente sobre o que se produziu em Portugal durante quase meio século. Podemos assim ter o direito de julgar, sem ter esquecido a faculdade de compreender. Em 2022, a democracia ultrapassou em duração os 48 anos da ditadura instaurada em 28 de maio de 1926 pelos militares. Desde inícios dos anos 1930 que Salazar encarnou esta ditadura ao ponto de lhe dar o seu nome. O que sabemos dele? Afinal, o que se sabe de uma vida? Os mortos, como se diz, estão sempre à mercê dos vivos, ainda que Salazar tenha tido o cuidado de se escudar por detrás de várias máscaras e de baralhar as pistas, à imagem da sua escrita tão difícil de decifrar ou até ilegível. Assim, antes de lermos as páginas que se seguem, não esqueçamos o aviso de Jean-Paul Sartre em L’idiot de la famille, a sua biografia de Gustave Flaubert: «Entramos num morto como num moinho.»